Marcelo Sitcovsky1
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 287 apresentada pelo governo Michel Temer, que pretende realizar uma profunda reforma da previdência, pode simplesmente parecer aos desavisados mais uma medida de austeridade, como parte do novo regime fiscal aprovado no final de 2016, quando da aprovação da PEC 55, atualmente Emenda Constitucional 95. Todavia, ela é mais do que isso. Essa proposta e a reforma trabalhista expressam o maior ataque aos direitos do trabalho já proposto no Brasil e, ainda, encobrem um brutal processo de expropriação do fundo público.

Todas as vezes que se pretende realizar reformas restritivas de direitos, a exemplo da PEC 287, os governos de plantão acionam uma velha conhecida: a tese do déficit orçamentário. O objetivo é gestar no seio da sociedade brasileira uma cultura de crise, que, ao se espraiar, constrói o clima favorável e justifica as medidas de ajustes. Concretamente, trata-se daquilo que Antônio Gramsci analisou como sendo o processo de construção de hegemonia, fazer com que ideias e valores particulares sejam incorporados e vividos como universais.

A agenda adotada pelo governo Temer e que deve ser replicada nos estado e municípios expressa às ideias, valores e, fundamentalmente, as necessidades de um setor muito específico da economia nacional e acima de tudo mundial – refiro-me aos financista e rentista. As medidas já colocadas em prática e propostas pelo atual Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, pretendem ampliar e aprofundar tendências que vinham dominando as orientações do Estado brasileiro no que se refere às contas públicas, às políticas sociais, em suma, ao fundo público.

O que não está revelado no texto da PEC 287 e, da mesma forma, esteve oculto quando da aprovação da emenda constitucional que limitou os investimentos públicos?
Incialmente cabe registrar que, a despeito do enorme esforço dos defensores da Auditoria Cidadã da Dívida, que desenvolvem um trabalho de muita qualidade, denunciando o esquema que se alimenta da dívida, a maioria da população não tem dimensão de como essa dívida foi adquirida. O Estado brasileiro se recusa a fazer uma auditoria, mas o povo deste país conhece bem os efeitos da dívida, na exata medida em que ela prejudica o desenvolvimento das políticas sociais tão necessárias para a população do país.

Os dados oficiais do orçamento geral da União executado em 2015, portanto do próprio governo federal, comprovam que dos R$ 2,268 trilhões, 42,43% foram destinados para pagamento de juros e amortização da dívida. Ao observarmos a proposta orçamentária de 2017, não só o orçamento da União aumentou, atingindo R$ 3,399 trilhões, como também se ampliou a fatia destinada ao pagamento dos serviços da dívida. A Emenda Constitucional 95 já tem seus efeitos devidamente revelados – possibilitará a expropriação de 50,66% do orçamento geral da União à serviço das poucas famílias detentoras dos títulos da dívida.

Mas o que tem a PEC 287 com isso?

A cultura da crise que novamente ganhou lugar na sociedade brasileira tem na proposta de reforma da previdência sua máxima expressão. O governo Temer tem divulgado sistematicamente, com apoio inclusive de parte significativa da grande mídia, a existência de um déficit nas contas da Previdência Social, que, em 2016, teria chegado a R$ 151,9 bilhões. Os mais incautos assumem esses números como verdade absoluta.

Duas questões se colocam imediatamente. A primeira se refere ao fato de que o governo federal, para apresentar esses dados, comete o que consideramos uma fraude contábil, pois desconsidera para efeito de cálculos da receita aquilo que está previsto na Constituição Federal de 1988, que estabelece um orçamento da Seguridade Social e não da Previdência isoladamente. A segunda questão refere-se à existência de dois processos que são responsáveis pelo desvio de recursos da Seguridade Social, portanto também da Previdência. Refiro-me a Desvinculações de Receitas da União (DRU), que, anualmente, tem sequestrado dinheiro que deveria ser investido em Saúde, Previdência e Assistência Social e, ao invés disso, é repassado para o pagamento dos serviços da dívida. O outro processo diz respeito à dívida de empresas com a Previdência Social, que, atualmente, acumula um montante de R$ 426 bilhões, o que equivale a quase três vezes do suposto déficit divulgado pelo governo.

Merece ser destacado que, mesmo com todos estes instrumentos existentes hoje e que prejudicam a Previdência Social (a DRU e a dívida das empresas), a Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil atesta que não há déficit na Previdência Social do país.

Outro aspecto que revela a economia política da PEC 287 pode ser observado ao analisarmos tanto os sujeitos que estão dirigindo esse processo, mas, fundamentalmente, ao explicitarmos o setor da economia que, se aprovada a reforma, irá se beneficiar diretamente. Neste sentido, uma das primeiras medidas do governo Temer foi a extinção do Ministério da Previdência Social e, ao fazê-lo, toda a parte financeira da previdência brasileira foi transferida para o Ministério da Fazenda. O atual secretário nacional de previdência social, o sr. Marcelo Caetano, possui conhecidos vínculos com o mercado de previdência complementar e os fundos de pensão, instituições que exploram o comércio de venda de planos de aposentadorias e pensões. Apenas no mês de agosto de 2016, as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC) atingiram um patrimônio de R$ 788,63 bilhões, representando 13,11% do Produto Interno Bruto (PIB).

O que os idealizadores da PEC 287 também encobrem é que entre os detentores dos títulos da dívida brasileira, os fundos de pensão têm um lugar especial. Maria Lúcia Lopes, pesquisadora do tema da previdência social, destaca que segundo, o presidente da Associação Brasileira de Previdência Privada, os fundos de pensão detêm R$ 60 bilhões em títulos públicos que venceram em 2014.

Portanto, quando reveladas as cifras envolvidas no mercado de planos de previdência, assim como as informações sobre a dívida pública, ficam evidenciadas as necessidades do governo Temer em promover aquilo que avaliamos representar um dos maiores ataques aos direitos do trabalho. O que está em jogo é nada mais nada menos que um brutal processo de expropriação do fundo público que beneficiará as empresas de previdência em detrimento do conjunto da população brasileira.

1 Professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Atualmente, presidente da Associação dos Docentes da UFPB – ADUFPB, seção sindical do ANDES-SN.